No começo da minha vida profissional, ainda católico, parecia-me até que a origem do desamor no casamento era a água-benta. Via casais se dando muito bem até benzer a aliança. Aí, sei lá por que, começavam a se dar mal. Parecia que não dava sorte. Adotei, então, hipóteses:
Primeira hipótese a rotina - Sempre ouvi dizer que a rotina destrói o casamento.
Tenho muitos amores na vida. O amor pela profissão é um deles. Ter profissão não é ter um emprego, mas industrializar um hobby, ganhar dinheiro, prestígio, poder, fazer alguma coisa que dá felicidade. A rotina na minha profissão é muito grande, mas não atrapalha. Ao contrário, facilita. Minhas sessões têm hora marcada, têm um ritmo determinado, têm princípio, meio e fim, eu tenho de fazer relatórios, consultá-los. Tudo rotina.
Mas essa rotina não diminui o amor que tenho pela minha profissão. É como no casamento: tem hora para almoçar, jantar, dormir, acordar, tem hora até para o lazer. A vida tem de caber naquele horário, atendendo ao profissional e ao social. Se rotinizo tudo isso, ganho tempo. Se tiver de acordar na segunda-feira e inventar uma semana, vou me dispersar.
Tire a rotina do profissional, ele se perde. Tire a rotina do casamento, ele também se perde. Um casal com dois filhos, por exemplo, não precisa só se qorganização para viver. Precisa de logística. Quantas manobras são necessárias até uma refeição chegar à mesa? Sem rotina, não dá, estoura.
Então, a rotina não é causadora do desamor. Alguma outra coisa destrói o amor e faz a rotina virar um peso. Se essa coisa não existir e o amor continuar, a rotina também vai continuar e será facilitadora.
Segunda hipótese - A poeira embaixo do tapete
Muitas vezes agente se vê nos outros e vendo o filme Cenas de um casamento, de Ingmar Bergman, comecei a formular minha segunda hipótese sobre a origem do desamor. A primeira cena do filme - introduzida com o título De como jogar a poeira embaixo do tapete - mostra um casal sueco comemorando seu aniversário de casamento. São figuras conhecidas da sociedade local e estão dando uma entrevista. Contam à repórter que sua vida é boa e que são felizes. A entrevista acaba, ele abre um champanhe, os dois bebem, se beijam, e ele tenta falar da vida sexual dos dois.
Ela tem um movimento de desagrado, ele insiste, ela mostra que não quer falar, ele recua, bebe mais um pouco, corta. Na segunda cena, o hamem está com a amante, muito mais jovem do que ele. E ai se entende melhor o título da primeira cena: De como jogar a poeira embaixo do tapete.
Comecei, então, a compreender o quanto esse hábito, tão comum nos casamentos, de jogar a poeira embaixo do tapete, é causador de ressentimentos. O que é ressentimento? É um sentimento re. Se tenho uma emoção que não vira atuação, ela fica. Se tenho uma carga agressiva e engulo, ela permanece viva dentro de mim. Nesse sentido, não existe passado em psicologia. Estou conversando com um casal, eles estão me contando uma coisa ocorrida há dez anos e de repente essa coisa começa a acontecer de novo na minha frente. Ela é revivida, ressentida. O casal joga a poeira embaixo do tapete e acumula ressentimentos. Chega uma hora em que a poeira é tanta, o ressentimento é tão grande, que fica impossível os dois continuarem unidos por qualquer afetividade.
A receita do diálogo
Quando descobri a força da poeira embaixo do tapete como causa do desamor, receitei diálogo. Parecia óbvio. Mas como se pode receitar diálogo para um casal que não consegue dialogar? No mínimo, os dois vão ficar ainda mais ansiosos.De como jogar a poeira embaixo do tapete.
De como jogar a poeira embaixo do tapete.
Ninguém fica neurótico por elegância. Nem é por maldade que o casal não conversa. É porque não pode, não consegue. E aprendi: em vez de receitar diálogo, a gente tem de trabalhar para que as pessoas possam aprender a dialogar.
Para dialogar, no entanto, é preciso fazer dois movimentos complicados e que exigem coragem: falar e ouvir. Tenho de conseguir falar. Tenho de ouvir o que o outro está dizendo. E ninguém me conhece melhor do que a pessoa com quem convivo.
O homem é um animal que sente e pensa. Fala o que pensa. Age de acordo com o que sente. Quando não se conhece, não pensa o que sente, não sente o que pensa. Acaba sendo duplo e emitindo mensagens duplas, falando uma coisa e agindo de outra forma, sem deixar de ser verdadeiro.
Quando fala, fala a verdade, esta falando o que pensa. Quando age, age verdadeiramente, está agindo de acordo com o que sente. Não percebe que é faça-o-que-eu-digo-não-faça-o-que-eu-faço.Não se dá conta de sua incoerência.
Quem está a meu lado o tempo todo está na posição privilegiada de poder registrar a incoerência. O outro está vendo: "Olha, ele diz isso e age assim, seu comportamento é diferente daquilo que ele fala".
No diálogo o outro vai falar de coisas que escondo de mim. São coisas dolorosas. O autoconhecimento é a chave da liberdade, mas é sempre uma má notícia. Quando cresço em autoconhecimento, enfrento coisas escondidas pela minha educação, pela minha vida. Escondi coisas de mim porque, quando era criança, ocorreram fatos tão dolorosos que meu
ego não aguentou e eu joguei dentro. Quando retomo aquela coisa com um ego maior, tenho a memória da dor. Quem convive comigo percebe e, percebendo, denuncia. A denúncia também é dolorosa. Então, eu me defendo: não ouço, ataco.
Portanto, o primeiro movimento é ter coragem de ouvir. o outro, como se ele estivesse fazendo não uma acusação, mas um depoimento
O segundo movimento é falar sobre coisas dolorosas para o outro. Isso também é difícil, porque amo essa pessoa, não gosto de machucá-la. Ela vai se defender, vai me agredir, e essa agressão dói. Então, prefiro não conversar, para fugir da dor. Jogo a poeira embaixo do tapete e, em longo prazo, vou permitindo a destruição do vínculo.
Há uma passagem do Evangelho, brilhante, na qual Jesus diz: "Deixa o cisco do olho do vizinho e olha o cisco do teu olho". E o que o casal deve fazer. Mas os dois têm ciscos, os dois têm razão. Vejo o seu cisco e acuso; você vê meu cisco e acusa.
Nos defendemos e não ouvimos. Como receitar diálogo nessa situação?
Depois aprendi que muitos casais não conseguem dialogar porque não são duas pessoas diferentes. Vivem uma patologia que chamo de processo simbiótico. Os dois desistem de ser inteiros para serem metades. E as duas metades montam uma unidade. Nessa patologia, um não fala com o outro, cada um está falando consigo mesmo. Não existe diálogo, só dois monólogos.
Assim, minha vida profissional, social, pessoal me levou da água benta à rotina, da rotina ao ressentimento, do ressentimento à falta de diálogo, da falta de diálogo à simbiose - esta, sim, a principal causa do desamor no casamento.
Para entender melhor o que significa simbiose, precisamos entender primeiro o que é uma pessoa inteira.
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